Sempre tive alguma dificuldade em definir o que é afinal a literatura Fantástica, talvez por ser um conceito demasiado abrangente, amplo e pouco estanque a influências de outros géneros literários. Todos concordaremos que se trata de ficção, no sentido de não relatar acontecimentos reais ou próximos de um acontecimento real. No entanto, já neste patamar poderíamos fazer duas distinções:



  • Ficção inverossímil - distante da realidade dos homens.


  • Ficção verossímil - distante da realidade dos homens, mas possível no todo ou em parte.

O problema é que o verossímil e o inverossímil podem misturar-se em diferentes dosagens, nem sempre sendo muito perceptível o que os separa...


Para Selma Rodrigues a "literatura fantástica europeia, ao contrário da produzida na América Latina, há uma preocupação em preservar o real quando algo sobrenatural ocorre, mesmo que a explicação apareça apenas no desfecho da obra. Visa-se, desta maneira, não se perder a verosimilhança, nem mesmo contestá-la. Já na literatura fantástica da América Latina, não há essa preocupação. Assim o verossímil funde-se com o inverossímil, o real com o sonho, como ocorre no caso da obra de Gabriel García Márquez, citada no início do livro, “Cem Anos de Solidão”."


Mas fiquemos pelo irreal, pois não sei se esta "compartimentação" geográfica consegue ser assim tão clara.


"Uma característica muitas vezes citada como delineadora e que limita a fantasia é que a história difere do nosso universo duma maneira que não resulta da ciência ou tecnologia, mas sim devido a magia ou outro fenómeno anormal."


Aqui já temos a distinção da Fantasia Científica ( Ficção Científica ), mas será que só a magia ou um fenómeno anormal justificam essas diferenças? As opiniões dividem-se. E o Terror? Mas a Ficção Científica também pode ter elementos da Fantasia e vice-versa... Ou do terror! E porque não? Ugh...


Se formos para o conceito de High-Fantasy podemos dizer que essa divergência, nem ocorre, pois o que é "credível" é o mundo "fantástico" que temos no livro, perante o qual o nosso mundo ( real ) nem sequer existe. Não existem termos de comparação. (??)


Em termos gerais também podemos classificar de Literatura Fantástica todas as obras que contenham determinados "ingredientes":




  • tecnologia e ambiência sócio-cultural medieval ( castelos, espadas, trajes, costumes, etc );


  • criaturas mitológicas ou com traços/herança cultural que as ligam a uma determinada mitologia ( dragões, elfos, grifos, duendes, etc );


  • causalidade de carácter mágico ligando os acontecimentos (1) - elementos mágicos;


  • clara distinção entre Bem e Mal ( heróis perfeitos, de sentimentos puros Vs vilões basicamente maléficos por natureza )

Podemos aceitar estes "ingredientes" como essenciais e rotular de imediato obras como Harry Potter, O senhor dos Anéis ou Eragon. Mas será assim tão linear? E quanto a outras obras (2) que se afastam mais ou menos destas premissas?


E se formos para o termos Ficção Especulativa? Abarca tudo?


O que é afinal a Literatura Fantástica? Fico a aguardar as vossas opiniões (3)!


Pedro Ventura


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1- Como defende José Luís Borges


2- Depois de escrever Goor fui confrontado com este problema. Tinha em mãos uma obra com uma conjuntura de "Literatura Fantástica", mas de onde estão ausentes muitos dos "ingredientes" acima referidos. As personagens são muito "humanas" e essa humanidade sobrepõe-se a tudo o resto. Goor é ficção, que decorre num mundo à parte, mas não é totalmente inverosímil. Classifiquei-o como Aventura Épica/ Romance Épico. No entanto, a fantasia ( o imaginário ) não lhe é estranha.

3- Espero com especial curiosidade a opinião do meu colega Roberto Mendes e do erudito PiresF

7 comentários:

As raízes etimológicas alicerçam a minha modesta opinião. Assim começo por explicar que o termo “fantástico” é oriundo do latim phantasticus , que, por sua vez, provém do grego φανταστικός (phantastikós) - ambas as palavras provenientes de fantasia. Refere-se ao que é criado pela imaginação, o que não existe na realidade.
Assim aquilo que eu tomo por literatura fantástica é (como Tzvetan Todorov conclui no livro “Introdução à Literatura Fantástica”) o que extrapola a nossa realidade regida por leis; Para Todorov, um evento fantástico só ocorre quando existe dúvida sobre a sua veracidade, quando é legitimo duvidar se um determinado evento é real, explicado pela lógica, ou sobrenatural, ou seja, regido por leis que desconhecemos. “Há um fenómeno estranho que se pode explicar de duas maneiras, por meio das causas de tipo natural ou de tipo sobrenatural. A possibilidade de se hesitar entre os dois cria o efeito fantástico.”
E é isso mesmo que para mim se insere na literatura fantástica : histórias (que não podem ser tomadas pelo autor ou leitor como alegorias, sob pena de perderem o seu condor de fantasia) que subjugam as leis deste nosso mundo que se nos apresenta como limitado, que evoluem através de um tempo e espaço incaracterístico, onde pode ou não figurar a magia( o chamado realismo mágico), podem ou não figurar criaturas lendárias e outras personagens provenientes da mitologia… Não acredito que seja necessária a presença de magia, a presença de inspirações em universos criados por mestres como Tolkien ou Gabriel Garcia Marquez, nada disso… acredito que a literatura fantástica é bastante abrangente e que engloba tanto histórias como o Senhor do Anéis e mesmo obras como a metamorfose de Kafka ( e porque não seria assim?)! E logo por aqui se nota a abrangência que tem este género…quando duas obras que à partida se encontram em vértices opostos se tocam! A minha mais sincera opinião é que esta é a verdadeira razão de ser da denominação “fantástico”. O livro Goor do meu colega Pedro Ventura é, talvez, considerado como pouco mágico por críticos “encartados”…pois bem, permitam-me discordar pois é uma obra com uma magia avassaladora, apenas um pouco diferente do habitual…mas quem disse que a originalidade é pecado? Por isso, na esteira de Todorov, o “fantástico é o género do maravilhoso” e o maravilhoso é mágicamente belo!

Roberto Mendes

21 de abril de 2008 às 08:47  

Amigo Pedro, não gabes muito os meus dotes eruditos pois posso deixar-te mal. Sempre achei que devia ter sido criador de cavalos e tudo o resto foi um acidente de percurso. Por isso, serei curto no dizer, para o ser também na parvoíce.

Hoje não sou grande leitor da Literatura Fantástica, mas não renego o quanto já fui e quantas centenas de livros do género, devorei. Mas quem poderá dizer, não ser ou ter sido apreciador da Literatura Fantástica? Que não leu o Jack o Estripador de Bram Stoker ou o Frankenstein de Mary Shelley, quem não leu os neofantásticos Kafka, Borges ou Cortázar, ou os clássicos Maupassant, Hoffmann, Poe e Gogol, só para dar uns exemplos? Aliás, como disse Sartre, “O fantástico, por excelência, somos nós”.

Li o comentário acima do Roberto Mendes, e não o querendo repetir, tenho de concordar que o género Literatura Fantástica é uma classificação onde encaixam subgéneros tão diversos como as chamadas artes épicas, seja o romance ou a aventura, em que és exímio e os GOOR são exemplo, o cyberpunk, o terror, o sobrenatural, a fantasia, a ficção científica… ou seja, tudo o que explora as fronteiras entre o real e o insólito, pode ser contextualizado na Literatura Fantástica e, embora alguns, a designem também como Literatura Gótica, não a do século XVIII que estava através do cyberpunk, ligada à ficção científica, mas a do século XIX que surge na época Vitoriana, por oposição ao período Iluminista de setecentos, não é esse o meu entendimento. A Literatura Gótica, é uma tendência romântica de inquietude da natureza humana em que o simbolismo se contrapõe ao racional, razão, porque, os escritores Góticos, eram por vezes catalogados como “artistas dos cemitérios” e, a ser assim, é também um subgénero da Literatura Fantástica.

Temos assim, que a Literatura Fantástica, será toda aquela em que através de sistemas simbólicos, ambíguos e estéticos, com intencional transgressão dos preceitos racionais vigentes, equacionando os domínios do natural e do sobrenatural, do estranho e do maravilhoso, do tempo cronológico e do tempo subjectivo, tenta contornar o incontornável real.

Um abraço.

21 de abril de 2008 às 15:09  

Se é impossivel, é Fantástico. Quando justificado é ficção cientifica; quando não, fantasia (e se é para meter medo, Terror). Às vezes é bom simplificar. Pode-se discutir muito, mas há que ir às bases e não há como variar muito sobre isto.

Já a questão da verosimilhança, não cabe nesta problemática, pois é um problema da literatura em geral e em nada ajuda a discussão do que faz um género, género.

14 de maio de 2008 às 12:57  

Errata: Onde se lê, «Jack o Estripador de Bram Stoker», deve ler-se, «Drácula de Bram Stoker».

14 de maio de 2008 às 16:04  

Se é impossível, é Fantástico. Quando justificado é ficção cientifica; quando não, fantasia (e se é para meter medo, Terror).
Simplificar nem sempre é bom.

-> Se ficção científica é fantástico, então ficção científica é uma impossibilidade cientificamente justificada? Não, até porque a expressão "impossibilidade cientificamente justificada" é uma contradição em si mesma. Uma obra de ficção científica é uma especulação sobre o curso que a história (e a ciência, a tecnologia, a civilização, a sociedade) vai tomar, uma possibilidade de entre milhentas, que poderá, eventualmente, tornar-se real, num futuro mais ou menos distante.
-> E fantasia não precisa de ser uma impossibilidade não verosímil - classificarias como ficção científica uma obra passada num universo diferente, com, por exemplo, uma organização física com uma unidade base que não o átomo? Mesmo que não tivesse nada de tecnológico? Eu não o faria. Por isso, seria uma fantasia possível (?) "justificada" (para utilizar o termo que utilizaste), verosímil. O que entraria em conflito com a noção de ficção cientifica.
-> E então «O Dilema de Shakespeare», escrito por Harry Turtledove, editado pela SdE e traduzido pelo Jorge Candeias, é o quê? E a série «Xochiquetzal», de Carla Cristina Pereira? Estas duas obras são perfeitamente verosímeis, apenas têm como base pequenas (que se tornam, posteriormente, grandes) desvios no curso da história, como a conquista da Inglaterra pelos espanhóis, no primeiro, e a descoberta das Américas por parte do Colombo, mas sob as "ordens" da coroa Portuguesa. Estas obras não contêm elementos mágicos/místicos ou tecnologias absurdamente avançadas, pelo que não são nem fantasia nem ficção científica. Então são o quê?
-> E depois temos ainda aqueles autores, como os mestres Hohlbien, que misturam a fantasia e a ficção cientifica de tal forma que não dá para separar um género do outro - isto acontece na saga Anders, em que o casal alemão coloca tanto ambientes mágicos e épicos como elementos tecnologicamente muito mais avançados que os nossos na mesma história, em pleno presente. E fazem-no de uma forma soberba, de tal forma que não dá para separar uma coisa da outra.

O género fantástico é extremamente complexo porque, nomeadamente no que toca aos ambientes utilizados, há imensos diferentes, e os leitores/escritores/editores gostam de os dividir. Só que as obras não são assim tão "classificáveis".
O género vulgarmente designado por "romance" é também imensamente complexo, com ambientes, enquadramentos históricos e próprios tipos de histórias muito diversos, só que não há essa preocupação em dividir o género. Temos o policial, o romance histórico e pouco mais. No entanto, no fantástico temos a fantasia épica, a realidade alternativa, a fantasia contemporânea (não sei se é assim vulgarmente conhecida, mas dá para entender), a fantasia urbana, o surreal, o splitstream, realismo mágico, o terror, o gótico, a FC, a ficção especulativa e o Ciberpunk. Depois há, é claro, as misturas de géneros e as obras que não se enquadram em qualquer sub-género (podendo estas ser as repercutoras de outros sub-géneros).

E isto tudo para dizer que não, não concordo que, neste caso, seja bom simplificar.
Mas é apenas uma opinião.

23 de maio de 2008 às 18:50  

Resposta ao Francisco:
Para que serve simplificar? Dar uma orientação, um eixo, para que se possa desenvolver uma ideia (a favor ou contra). Só por exemplo.
Adiante.
«Se ficção científica é fantástico, então ficção científica é uma impossibilidade cientificamente justificada? Não, até porque a expressão "impossibilidade cientificamente justificada" é uma contradição em si mesma. »
Viajar mais rápido que a luz, aliens, teleportação...que são estes mecanismos literários senão contradicções conceptuais que não existem, não podem ser provadas, puras impossibilidades? E faço notar que se não houver uma explicação científica para a sua existência nas histórias, estaremos somente no bom velho campo das coboiadas transpostas para o espaço...o que não faz disso FC.
Confundir previsão, futurismo, extrapolação social com FC é quase o mesmo que dizer que os astrólogos fazem religião. A FC pode fazê-lo, mas não nos esquecemos do elemento essencial: a Ficção, que é um fenómeno literário. A verosimilhança, que o Francisco chama à colação (e que eu não referi) é pura e simplesmente um problema literário: quanto dela é que um autor consegue fazer engolir a um leitor? Daí que, por exemplo, as pessoas gostem de ler coisas diferentes.

«classificarias como ficção científica uma obra passada num universo diferente, com, por exemplo, uma organização física com uma unidade base que não o átomo? Mesmo que não tivesse nada de tecnológico? Eu não o faria.»
Pois. Fazes mal. É isso mesmo que é FC. Imaginar formas de pensar diferentes, usar o que é conhecido para especular justificadamente (e não verosimil). Recordo que usaste o termo especulação, e bem. Mas usas mal o exemplo, quando hoje em dia muitos físicos especulam precisamente sobre formas diferentes de organização da matéria...porque nada obsta a que elas existam (o que não quer por isso dizer que existam mesmo).
Passando aos teus casos práticos, cá vai a sabatina:
A História alternativa, que uns quantos recentemente descobriram sozinhos e apodaram de História Virtual ao se iludirem de não estarem a considerar formas de ficção literária, é por essência o quê?
Téns uma premissa básica, por definição impossivel (um ou mais eventos históricos que não aconteceram), e cujo desenvolvimento e ponderação das ramificações é tomado com considerações sociais. Para saber se a história alternativa é FC ou fantasia, que critério? Se usares a minha simplificação original, muito fácil: a explicação do "evento diferente". Imagina que Cristo não existiu; escreves sobre um mundo muito detalhado posterior a esse não evento, mas se disseres que ele não existiu por que veio um homem do futuro que o assassinou, isso é FC (sobre o tema: "Eis o Homem" de Michael Moorcok. Mas se não "explicares", tens FC? Onde? Só porque arbitráriamente decidiste que assim é? Não me parece. Podia resultar para o Damon Knight quando ele afirmava que FC era o que ele dizia ser FC, mas não para o resto dos mortais. Se agarrares num elfo e disseres que ele é o produto de manipulação genética feita por Antarianos dissidentes radicados no lado negro da lua entretidos a querer baralhar a cabeça dos humanos, estás a fazer FC; se não disseres nada e o elfo só estiver ali porque nasceu assim e tal, de uma linda familia de elfos...desculpa, mas para algumas pessoas, isso até nem bastaria para fazer da história Fantasia.

Mas é bom que a malte fale mais destas coisas. E se leia mais.
O género fantástico, como qualquer outro, não é muito complexo. As suas roupagens são-no, mas como sempre, as pessoas é que complicam tudo. Dá gozo, mas não é sempre frutífero. Essencialmente os gostos dividem o importante: a literatura. A imaginação presa na letra e liberta por ela. O resto é paisagem; não podemos é ficar sempre presos nela.

5 de junho de 2008 às 14:12  

Este blog é de Portugal? Tudo que acho na Internet sobre Literatura Fantástica em Língua Portuguesa é de Portugal.

15 de julho de 2008 às 16:52  

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