Depois do desafio por nós lançado decidi ser justo que fosse eu a dar o mote... por isso aqui vai um conto (talvez o género literário que mais me fascina) da minha autoria, que surge de alguns textos que escrevi como por exemplo os já aqui publicados "gloria perpetua" e "ethrôm"...
Assim aqui vai:

A chuva cai colando-se à minha parca roupa, beijando-me a pele. Não me importo, sempre gostei da chuva! Cavalgo à vários dias, sinto o meu belo cavalo cansado e afago-lhe um pouco a cabeça, ele relincha, percebendo o meu sinal. Há muito que não provo o sabor da comida…sinto o meu corpo mutilado, o sangue jorra, deixando poças lodosas de um viscoso vermelho no chão. O odor é pestilento, quase insuportável; Mas é necessário caminhar, e imprescindível continuar. A chuva aumenta de intensidade, sirvo-me dela para lavar o meu corpo e para atenuar as minhas preocupações. O som da água a cair, soprada por um vento superior que se junta agora à cena reclamando um lugar de destaque, é perfeito! À minha volta a floresta respira, vive, alimenta-se do que lhe é mais puro… A noite vai já longa, a lua insiste, no entanto, em iluminar esta magnifica terra, fazendo incidir o seu luar em tudo o que me rodeia. Não tenho problemas em divisar o caminho e estou grato por isso.

Afasto, repudio completamente pensamentos escuros, negros, não descerei a esse nível. Consigo assim repelir sentimentos que não me são dignos; afinal sou o único sobrevivente da minha casa, da minha raça!

Chega a manhã e a chuva desistiu de mim, não evito alguma tristeza por ver um companheiro de viagem partir… eu não paro, sinto-me fraco, estou fraco! A manhã acordou num esplendor de perfeição, a floresta desabrocha à minha passagem e uma doce melodia ouve-se no ar, embora distante. Caminho por entre majestosos e colossais carvalhos e também cedros muito antigos. São sábios, baixo a cabeça e entoo uma pequena ode de respeito. Sente-se um cheiro fresco, não demoram a aparecer medronheiros vistosos…Aproveito e colho alguns frutos, pedindo de forma gentil; A comida dá-me um novo alento, parto ainda mais decidido. A beleza da natureza reflecte-se em mim, não sou o mesmo da noite passada…e sei onde tu estás, sinto a tua presença, não estou longe. Sinto o teu odor de destruição e repugno-te uma vez mais.

Passo a maravilhosa floresta e entro num enorme deserto, a melodia pára e o meu coração acelera. O rufar de mil tambores não seria tão claro quanto as batidas no meu peito dilacerado. Vejo a orla da floresta negra, sinto o seu cheiro hediondo, vejo as suas cores miseráveis, que viajam desde um negro destoado a um pálido cinzento.

Uma voz ressoa no tempo e no espaço quando entro no negrume, deixou de ser dia mas também não é noite; aqui nada é, nada foi, nada será! Uma gargalhada surreal ecoa por entre a vegetação podre de cheiro nauseabundo.

- Ha, ha, ha… Há milhões de anos e mais que estou morto, posto sobre o negro pestilento, à chuva, ao vento, não há como eu, espectro macilento!

Surgem as brumas…desmaio, caindo das alturas do meu cavalo…atinjo o solo com um baque estridente…mas não cesso…a minha alma está viva…Acordo! Negros tempos assolam o meu coração, rajadas de vento frio invadem o meu corpo como se houvessem pretendido retirar o calor que ainda me preenche!!! A chuva cai agora grossa e nem a capa que construí durante anos me protege na totalidade, aqui e ali vários buracos rompem o manto, a chuva chega à minha pele mas não pára, não será esse o seu destino? Penetra-me e gela-me o sangue! Mas são as brumas que me assustam...apareceram lentamente, cinzentas no seu ser de esplendor, misteriosas...de principio apenas envolvem os meus pés descalços e ensanguentados, arrebatados pelo tempo que flúi na ampulheta eterna da vida; mas sobem e sobem, envolvendo-me cada vez mais e mais! Os meus olhos não são agora mais que dois pequenos pontos, outrora negros e fortes, agora ténues e transparentes. Fixam as brumas, sentem a chuva e perdem-se com o vento! O coração utiliza as suas defesas e consegue derrotar milhares de inimigos em outras tantas batalhas...contudo já perdeu muitos soldados e sabe que chegou o momento! Não poderá lutar muito mais, perderá! Lutar ou desistir? É a duvida que me destrói...Nos meus olhos não poderei confiar, corrompidos pelo mundo! As minhas mãos já nada sentem, o nariz nada cheira, a boca não existe? claro!... Apenas a minha alma se pode elevar e quebrar as barreiras dos impiedosos inimigos, sorrindo no fim! Apenas o sangue pode escrever a minha tragédia.

Os espelhos de mil cores já não me definem...a água cristalina já não me reflecte! Não apresenta a imagem do "eu", aquela que eu imaginava ter mas que não tenho; ilusão criada, de mim para mim, com o cheiro fresco do puro e intocável ser que não é, ou que por razões milenárias desconhecidas, adormecidas, embevecidas no isto e aquilo que se apresenta como a forma do ser, desconjugado de realidade, efervescente de felicidade, borbulhante de brumas longínquas se viu afastado de permanecer...
O vento já nada me sussurra, passa e bate, violento de raiva, angústias gritadas na roda do tempo!
O gelo derrete a cada passo desconjugado, de tanto alinhado, pensado aqui e agora, ontem e no outro dia, de momento em momento, do tempo ao vento, do tormento ao tempo, das crisálidas mortas enterradas e depostas no ser único do agora…NÃO! Recuso-me, já não me mostras, já não me reflectes...
Só a lama me reflecte! O cheiro a podridão de memórias vividas e absorvidas , mantidas escondidas para não serem minhas, para serem de outro eu, aquele que não existe, o grande fantasma de mim...memórias esquecidas... SIM...Eu aceito, que sois vós que me reflectes; espelhos negros que me definem, me abraçam e consolam nesse esplendor de cheiro fétido, e eu morro a cada momento nesses braços aveludados de brumas negras desgastadas…

Mas luto e permaneço pois eu sou Álf, Ijósalfar de Álfheim!

Sabia que chegarias e esperei...imóvel e imerso na natureza eu vi passarem três dias, quatro noites! E foi pela floresta que eu te pressenti, pois retiras a alma às mais puras flores, fazes os mais antigos freixos duvidarem, arrancas a vida ao sopro do vento! O teu cavalo negro aparece; tu vens imponente na tua armadura negra e os teus cabelos longos esvoaçam com esplendor! Fixo os teus olhos e vejo que não tens alma. Desmontas e sentes medo...e eu também!

Odeio-te e grito:

-Eu sou ÁLF, Ijósalfar de Álfheim...Tu és RAHÊ, Svartárfel de Svartárlfheim; aqui morremos!



Roberto Mendes (Igdrasil)

2 comentários:

Texto muito intenso e denso, no estilo que te caracteriza. Muito bom e a merecer que entres por esses mundos e escrevas tudo o que por lá acontece!

Abraço!

18 de abril de 2008 às 19:49  

Realmente lindíssimo!

As descrições envolvem a personagem a cada passo dado, apelando para que a sua alma não se esvaia e continue viva, podendo assim dar largas aos sentidos.

Tudo de bom ^^

27 de maio de 2008 às 12:50  

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